quinta-feira, 5 de abril de 2012

O Cristo das pessoas invisíveis


Will Eisner(1917-2005) foi um dos maiores artistas de histórias em quadrinho, de grande importância para o desenvolvimento do gênero. Trabalhou em diversas revistas americanas, criou obras como a famosa série policial The Spirit. De certa forma ele é reconhecido por elevar a arte a um patamar acima, criando o termo Graphic Novel (romance gráfico). Eisner já havia se distanciado da produção de quadrinhos de entretenimento, já era professor da School of Visual Arts em Nova York e era um artista consagrado, quando nos anos 1970, aos 59, reinventou-se a si mesmo e aos quadrinhos, atitude que o levou a lançar a Graphic Novel Um Contrato com Deus e outras histórias do cortiço, um marco para a 9ª arte, a partir da qual começaria a se aprofundar nos dramas cotidianos dos indivíduos.

Eisner possuía grande sensibilidade para perceber e ler as pessoas. A mudança de reação dos seres humanos quando submetidos a diferentes ambientes era algo que o fascinava. Em Pessoas Invisíveis, Eisner narra num realismo duro e ao mesmo tempo poético, os dramas pessoais das vidas de 3 moradores da cidade grande. O solitário passador de roupas Pincus Pleatnik, o mendigo Morris e a bibliotecária Hilda. Pessoas comuns que se tornam invisíveis umas as outras, usando o anonimato para sobreviverem em meio ao caos urbano e se protegerem das demais pessoas, sendo entregues a invisibilidade cotidiana da falta de interesse dos outros em um ambiente que força pouco a pouco o seu esquecimento. Retratos de muitas vidas que vivem no meio urbano.

O conto O Santuário, particularmente, é o que mais me chama antenção. Nele Pincus Pleatnik é esse solitário passador de roupas que escolhe viver na invisibilidade, tornando-a uma espécie de santuário que o resguarda do interesse das outras pessoas, se aproveitando do sistema das grandes cidades, para se manter esquecido dos olhares de outros. Quando seu nome é acidentalmente publicado no obituário do jornal local, Pincus entra num processo de desaparecimento: perde sua casa, perde seu emprego, sua dignidade e por fim, perde sua vida, confirmando o obituário equivocado.

As pessoas invisíveis estão aqui, ao nosso redor. Esquecidas em maior ou menor grau, por vontade própria ou por imposição do sistema denunciado na obra de Will Eisner. Jovens ou idosos, o mendigo na porta do banco ou o infeliz empresário de ''sucesso'', adolescentes solitários, universitários desesperançosos, o homem de negócios que está prestes a dar um tiro na própria cabeça.

E é aqui que Cristo entra. Consequentemente deve ser aqui que nós, como o Seu corpo, entramos. Cristo é o Deus dos invisíveis. A imagem de um Deus que come com pecadores de Marcos 2. 15-17 é extremamente forte. Por meio de Cristo, Deus reconcilia-nos consigo mesmo e como diz C.S. Lewis, cria uma nova espécie de homens chamada Igreja. Viver para sua glória é o que devemos fazer, e Ele nós dá a oportunidade de glorificá-lo levando e praticando seu amor, o que muitas vezes tendemos a não fazer.

'' Porventura, não é este o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo o julgo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados, e, se vires o nu, o cubras e não te escondas do teu semelhante?'' Is. 58. 6-7.

A obra de Cristo redime nosso ser por completo, redimindo também as nossas relações e somando ao nosso vocabulário uma nova expressão: a auto-doação. O apóstolo Tiago nos diz que a verdadeira religião é visitar aos órfãos e às viúvas em sua aflições, guardando-se da corrupção do mundo. Temos falhado tanto em demonstrar a glória de Deus e seu amor sacrificial. A vida de Cristo é uma lente através da qual conseguimos enxergar todo o nosso orgulho e falsa religiosidade e é um padrão ao qual através de sua graça podemos nos adequar.

No seu livro A cruz de Cristo, o escritor e teólogo britânico John Stott diz algo profundo sobre o Amor de Deus agindo na e através da vida de um cristão:
'' Se algum de nós tem algo e vê outra pessoa que dele necessita e falha em relacionar o que tem ao que vê em termos de ação prática, essa pessoa não pode dizer que tem o amor de Deus. Assim, o amor alimenta os famintos, abriga os desamparados, ajuda os destituídos, oferece companhia aos solitários, conforta os tristes, contanto sempre que essas dádivas sejam prova da doação do ser.'' (capítulo 11, pág. 267, Editora Vida)


As cidades estão cheias de Pleatniks, de Morris e de Hildas, esperando para serem encontrados. A cruz nos capacita de maneira sobrenatural a enxergar, amar e nos doar aos invisíveis espalhados por aí, nos ensinando a partilhar a riqueza do Evangelho num mundo faminto em todos os sentidos. Ela nos faz ouvir o mendigo na porta do banco, o infeliz empresário de ''sucesso'', o adolescente solitário, o universitário desesperançoso e o homem de negócios que está prestes a dar um tiro na própria cabeça. Ela nos chama a participar da glória de Deus revelando a eles a grandeza da esperança que pode ser encontrada em Jesus. Afinal, um dia essencialmente fomos todos invisíveis porque, como Adão quando se escondeu de Deus após cometer o primeiro pecado, escondemos voluntariamente a nossa face da presença do Senhor. Cristo mudou tudo: ele veio a nós, quando ainda mortos nos nossos delitos. O Cristo que come com pecadores e que os recebe com alegria.

'' Se abrires a tua alma ao faminto e fartares a alma aflita, então, a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como o meio dia.'' Is. 58.10